venerdì 17 settembre 2010

O Comandante (Ricardo Gondim)

O Comandante
Ricardo Gondim

“Existo para quê?”. A pergunta repicava em sua mente como um sino de catedral ao meio dia. Enquanto Roberto caminhava pelo hangar, tapava os ouvidos. Tentava abafar o barulho de uma turbina em teste; o exagero nos decibéis poderia dar enxaqueca. Era a turbina de seu Boeing que rodava sobre tripés. Depois de cumpridas as oito mil horas de vôo, todo avião precisa de uma manutenção meticulosa. Desmontaram toda a fuselagem para que cada rebite, cada milímetro de cabo e cada luz fossem revisados.

Roberto notou que já haviam retirado as asas e o avião, magro, se resumia a uma grade; mostrava suas costelas como uma baleia retalhada. Parou, seus olhos pesaram e se sentiu amputado. Como era triste ver um avião daquele jeito. Roberto amava voar, sentia-se onipotente quando puxava o manche e fazia decolar aquela imensa máquina. Mas seu Boeing jazia esquartejado com milhares de operários, feito vermes, remexendo suas entranhas. Arrepiou-se. Correu-lhe um frio quando pensou no dia que também só lhe restaria a carcaça.

“Existo para quê?”. Essa pergunta repetia-se estridente como uma música alucinada mais forte que a própria turbina. Sua angustia tomou conta de sua alma enquanto permanecia imóvel no fundo do hangar. Depois que perdera o encanto por Londres, Paris, Hong Kong e Bruxelas, e depois de se cansar com os corredores mal iluminados dos hotéis de luxo, saber para que existia tornou-se uma obsessão.

Mas agora, cansava só de imaginar a bateria de exames médicos e psicológicos que precisaria se submeter em minutos. À semelhança do avião retalhado, ele também seria dividido em minúsculas porções. O oftalmologista o analisaria; os raios x o revelariam de dentro para fora; encabulado, entregaria seu sangue, urina e fezes nas mãos de uma assistente. E ainda havia aqueles malditos testes psicotécnicos. Roberto não só teria que provar para estranhos que estava bem dos rins ao nariz, dos olhos aos pulmões, como também mostrar que ainda não enlouquecera, e que sua agilidade mental estava preservada depois de tantos anos de profissão.

Roberto seguiu até o setor médico no prédio, anexo ao hangar e apresentou-se à recepcionista. Ouviu um pedido educado:

-Comandante Roberto Miranda, o senhor poderia sentar-se e esperar apenas alguns minutos? Dr. Azevedo logo o atenderá.

Roberto obedeceu e pegou a revista de bordo "Mundo Alado". Mal folheou as primeiras páginas e ouviu a voz familiar do médico. Conhecia-o do clube e de outros exames. Já se submetera àquela mesma rotina três vezes nos últimos quinze anos.

-Comandante, seja bem-vindo, vamos entrar.

Os dois se cumprimentaram com um abraço displicente e rapidamente passaram ao consultório.

Roberto notou que os cabelos do médico alvejavam e pensou:

-Nem notei que os meus próprios também estão mais alvos que as neves nova-iorquinas, brincou num solilóquio.

Dr. Azevedo se antecipou e antes de falarem sobre a bateria de exames, comentou sobre o futuro da companhia, atolada em dívidas.

-Comandante, a situação está preta. Eu soube que vão despedir oitenta por cento dos pilotos e noventa por cento dos tripulantes; já fecharam as lojas, vão acabar com quase todo serviço de bordo. Azevedo falava como se estivesse escondendo algum segredo da recepcionista do outro lado da parede.

Roberto quase não respondia. Suas reações se resumiam a monossílabos incompreensíveis. O comandante mantinha um desânimo no rosto enquanto Azevedo tagarelava sobre seus direitos e sobre o Fundo de Compensação das Aposentadorias.

Roberto divagava como se sonhasse acordado. Passeava pelo campo de pouso do Aeroclube de sua cidade. Viu-se menino, olhando para os pequenos e frágeis monomotores, os queridos “Paulistinhas”. Quantas vezes, antes mesmo de completar dez anos de idade, correu atrás deles com um cata-vento na mão, que parecia girar mais rápido que a própria hélice quando rugia e provocava ventanias.

Roberto morara a pouco mais de cem metros do Aeroclube e enquanto outros meninos chutavam bola; e depois começaram a namorar, ele se sentava numa pequena oficina onde o Zeca reparava os pequenos motores.

O dia mais feliz de sua vida aconteceu quando o instrutor Felipe Caran precisava fazer um vôo teste e lhe convidou para ser o passageiro do banco traseiro do paulistinha. Foi o seu vôo inaugural. Quantas vezes sentiu a mesma felicidade quando afivelou o cinto e viu o mundo se apequenar pela janela dos gigantescos jatos que pilotou.

Naquele primeiro vôo, depois que atingiu mil pés de altura e Felipe Caran estabilizou o monomotor em velocidade cruzeiro, passou a explicar para o menino como funcionava o altímetro, a função dos flaps, o rádio de comunicação com a torre e outros detalhes. Permitiu, inclusive, que Roberto segurasse o manche. Com dois minutos o avião lhe obedecia. Sua vida nunca mais foi a mesma. A janela do monomotor estava aberta, o vento fez escorrer dois fiapos de lágrimas até a orelha. Estava irrigada uma decisão: seria um piloto.

Ele sempre pareceu uma criança melancólica, embora os olhos castanhos lhe denunciassem como um forte; impressionava com o porte. Seus cabelos grossos e castanhos formavam franjas teimosas que pendiam sobre a testa. Por toda infância, seu mundo se resumiu à escola, ao hangar do Zeca e às muitas palestras sobre aviação que assistiu escondido no curso de preparação para os candidatos a brevê.

Aos dezenove anos, Roberto já estava brevetado, com direito a fotografia nos arquivos do Departamento de Aviação Civil como habilitado para voar por instrumento. Como nesse tempo as companhias aéreas expandiam,, não demorou para ser contratado como co-piloto de um turbo hélice. Em pouquíssimo tempo, depois de alguns cursos com muito, muito estudo, ele se tornou o mais jovem comandante de Boeing de toda a história da aviação.

Acumulou milhares de horas de vôo sem nunca correr perigo. Jamais precisou requisitar suporte de terra para procedimento de emergência. Sempre cioso com as check lists, não permitia que seu avião saísse do terminal caso suspeitasse qualquer anomalia. Por isso, ganhou vários prêmios. Seu nome foi citado em todas as revistas especializadas como um profissional modelo.

Roberto pilotou as rotas internacionais de sua companhia aérea; conhecia os aeroportos de quase todo mundo.

Acostumado às rotinas, logo passou a se chatear quando era convocado para voar no Natal e Reveillon; ele não agüentava mais as servidas a bordo. Já não dormia com facilidade nas camas dos hotéis. Aqueles dias de Aeroclube amarelava como uma fotografia velha.

Sentado no consultório, Roberto percebeu o tamanho de sua fatiga. Fracassara em um casamento; não viu seus dois filhos se tornarem homens; não foi à maternidade ver seus dois netos. Não temia submeter-se à bateria de exames rotineiros. Contudo, apavorava-se de se conseguir passar no mais difícil exame: aquele que o homem faz com a sua própria alma.

Azevedo tagarelava sobre o sindicato, a Fundação, a greve já organizada e Roberto contemplava um horizonte inexistente. Parecia um cego que, sem movimentar os olhos, parece ver o nada.

-E aí comandante Roberto, o que o senhor pensa que vai acontecer?
Como se acordasse, Roberto respondeu:
-Qual futuro? Como poderemos viajar para longe do presente, se ele é tudo? Por que querer escapar do presente se nosso destino se acorrenta a ele?

Olhou para Azevedo e falou como se comunicasse pelo rádio com alguma torre de controle.
-Veja minha vida, ela ficou para trás como uma nuvem que o avião rasga. Azevedo nosso presente é como a terra que a gente vê de cima de um avião. Voamos a quase mil quilômetros por hora, mas o cenário muda com uma lentidão irritante. Nossa vida não pode esperar. Nosso destino não se esconde por detrás de uma montanha qualquer. Nosso futuro não vem em nossa direção, nós é que vamos ao encontro dele. Não podemos nos condenar a esperar, esperar. Nossa vida acontece aqui e agora, ela é o que vivemos e fazemos para sermos felizes.

Azevedo assustou-se com a mudança brusca do comandante, outrora plácido, em um pensador tão loquaz.

-O senhor anda lendo muita filosofia.
Com um olhar que parecia um dardo inflamado, Roberto continuou:
-Não, não estou lendo nada em especial. Apenas não aceito esperar pelo meu destino. Quero pilotar a nave mais importante que existe: eu mesmo.
Azevedo baixou a cabeça e esperou que terminasse.
-Não há planos de vôos para a vida, Azevedo. Não há rotas predeterminadas. Na vida navegamos por caminhos nunca explorados e eu estou cansado de submeter os meus planos de vôo. Não quero ninguém aprovando para onde devo ir, entende?.

Azevedo não entendeu, mas balançou a cabeça dando entender que sim. Roberto iluminava seu semblante a cada palavra.

-Azevedo, desde que sou criança nunca me faltou nada. Não me faltou dinheiro, nem saúde, nem coragem. Faltou-me apenas viver. Voei alto, mas minha dedicação profissional e meu zelo pela segurança de meus passageiros, eram fugas. Escondi-me na oficina do seu Zeca porque me faltava coragem de enfrentar o perigo de ser rejeitado pelas meninas que queria namorar; quis alcançar o céu porque tinha medo de pisar a terra. Desejei as alturas para ser livre, porém não fiz o que queria; obedeci mil manuais e milhões de regras.

Roberto colocou-se em pé, o médico o olhava de baixo para cima, amedrontado:

-Azevedo, ser livre é conquistar o direito de construir, de sulcar nossa própria história; não deixar que outros se sentem na cadeira do comandante com o manche na mão. Veja você, seu mundo se resume a esse consultório, suas maiores aspirações estão nas mãos alheias, seu futuro depende de uma reunião de diretoria. Você está passando velozmente e o seu cenário se arrasta em câmara lenta.

Azevedo sentiu-se agredido e resolveu contra-atacar.

-Comandante, eu amo a medicina, amo o que faço, tenho muitos motivos para ser feliz. Acho que o senhor tentou projetar em mim sua própria crise. Se luto por uma questão salarial é porque sou solidário às famílias que dependem da saúde dessa empresa. Minhas reivindicações não significam que seja um frustrado”. Azevedo parou, esperando que o assunto esfriasse para começar com os exames de rotina.

A turbina em teste no hangar silenciou. A sala se encheu de uma quietude incômoda.

-Vamos começar?
Pediu o médico.

Roberto mais uma vez se esqueceu do mundo; tinha o olhar das crianças quando brincam com pensamentos que não são pensamentos. Desligado, parecia ouvir alguém lhe falando ao longe. Chegou a franzir a testa como se esperasse a próxima mensagem e voltou à carga:

-Azevedo, eu gosto do céu; já me acostumei com o azul da estratosfera; não há nada mais lindo que enfrentar os astros e navegar rumo às galáxias. Você não imagina quantas estrelas cadentes já vi em noites sem lua. Contudo, o alumínio das fuselagens, as rotinas dos manuais e o ambiente intragável das salas de imigrações estão me matando.

Ainda em pé e segurando o encosto da cadeira à sua frente, disse:

-Quero deixar de ser o Comandante Roberto e opto pelo simples Roberto que ama a liberdade e adora o espaço. A partir de hoje vou determinar a minha própria história; isso devo a mim mesmo.

Azevedo sentiu que não adiantaria continuar replicando o comandante:

-Então, tá. Deixe eu tirar sua pressão arterial.

Roberto demorou uma fração de segundos para reagir, de cabeça baixa, parecia consultar uma check list pendurada sobre o peito.

-Não, hoje não.
Apertou a mão do médico, deu as costas e saiu com um breve e seco até logo. Desceu pelas escadas, passou pelo esqueleto do Boeing e sumiu.

A última notícia que se soube do Roberto é que ele havia participado de uma expedição de ornitólogos pelo interior da Amazônia.

Soli Deo Gloria.

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